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Quando o colecionador vira artista

Evangelina Seiler

O LIVRO Corpos, letras e alguns animais é mais que um livro, é uma obra de arte que apresenta obras de arte e, portanto, um belo discurso meta-literário e meta-artístico acerca da importância da obra de arte. A Coleção Calmon-Stock, por sua vez, é mais que uma coleção, pode-se dizer que é uma curadoria residencial a partir da associação de objetos familiares e obras escolhidas.

 

Curiosa, instigante e particular, a Coleção Calmon-Stock mostra dois colecionadores que escolhem suas obras independentemente de interesses externos. A coerência do conjunto é estabelecida pelos colecionadores e apenas por eles, tanto que o livro Corpos, letras e alguns animais chega a parecer uma biografia, quase um álbum de família, uma autobiografia, que vai muito além da inclusão das fotografias do interior da residência, do cachorro de estimação, do porta-retrato sutil na estante, da intimidade familiar dos colecionadores com suas obras de arte.

 

Já ao abrir o livro, vemos os corpos de Fernando de La Rocque, que logo são seguidos da poética em letras de Omar Salomão.

Fernando de La Rocque projeta o Kama Sutra em azulejos, lado do seu trabalho fundado em uma suruba desprovida de pornografia e cheia de fecundação, plural e multicolorida, multirracial. Apocalipo de Dostoievskiville, por exemplo, promove um diálogo através do tempo entre os insetos do subsolo de Dostoiévski, da família Karamázov e a Metamorfose de Kafka, reelaborando-os muitas décadas depois.

Também na coleção, José Damasceno evidencia sua presença instigante no sentido de provocar uma inquietação mental e emocional, levando a imaginação estética – de uma beleza às vezes tão simples –, a associações que vão além da construção da obra, que no entanto é tão grande a ponto de poder contentar-se consigo mesma. Camila Soato, por sua vez, parece reelaborar as máscaras de Goya nas obras cheias de zombaria e sarcasmo Feiticeiras 8 e Feiticeiras 10, ambas de 2015. Em Divas 8, também de 2015, pinceladas de vermelho-vivo transvertem o poder do pomposo rei em uma drag queen maquiada e carnavalizada. A artista parece brincar eterna e abertamente com a perversão, pintando tanto a realidade da vida adulta quanto as imagens da infância com muita sexualidade e sem nenhuma ingenuidade.

Gabriel Centurión faz um discurso político-social, cheio de força, aponta ora para o consumo devorador, como acontece em A nossa ampulheta está caindo e a gente não sabe quantos grãos ainda faltam, ora para o vazio subjetivo que alcança força descomunal ao denunciar o isolamento da solidão, uma solidão que continua viva mesmo na imagem caricaturesca ou artificial de suas figuras animais, heroicas ou lúdicas, e inclusive infantis – porque também essas imagens mostram sempre um ser humano sozinho, abandonado a si mesmo.

Já Cabelo mostra como soube usar o código da rua desde o início de sua carreira artística, dando-lhe um sentido que é um misto de mantra e lema político, uma fina delicadeza que pode transformar um menino de rua em buda. As palavras de Cabelo se misturam e formam paisagens, entre figuras humanas e de animais, criam uma vibração ótica intensa com suas letras de tamanhos e cores vibrantes e variadas. Rafael Adorjan, por sua vez, trabalha suas imagens, positivo/negativo, impressas em papel e adesivadas sobre LPs de vinil sem gravação. Especificamente na obra Hi-Fi # Mulher Terra vol. 2, o artista se refere ao movimento feminista e homenageia a artista cubana Ana Mendieta ao trabalhar com a impossibilidade, a ausência de voz neste universo que, junto com o de outros gêneros, luta pela liberdade de simplesmente ser e viver de acordo com suas preferências e razões.

QUANDO SE OBSERVA as obras de Leonardo Fanzelau, percebe-se – e não apenas pela imagem rupestre no interior do Ovo de Lascaux ou pela visão de vida e morte, sagrado e profano, que existe na obra sem título em que ovos atravessados por pregos se cruzam num movimento cruel e preciso sobre a almofada de um roxo episcopal – que a Coleção Calmon-Stock identifica de forma sistêmica a presença biográfica dos colecionadores através de personagens e questões que se repetem ao longo das páginas do livro. A coleção acaba revelando uma confissão através das escolhas artísticas em uma grande colagem que apresenta os afetos, as dores, as interdições dos colecionadores, ao mesmo tempo que anuncia uma grande tranquilidade em conviver com imagens tão fortes e cheias de significado como as das figuras assustadoras, temerosas e transformadoras dos argentinos Gabriel Grün e Lorena Guzman.

As obras da Coleção Calmon-Stock, muito além de uma coleção usual, poderiam ser as obras de arte que os próprios colecionadores esboçariam se fossem artistas. Os colecionadores inclusive expõem as profundas conversas que têm consigo mesmos, compartilhando generosamente suas preferências com o público através do catálogo. O diálogo que se estabelece claramente entre os colecionadores, as obras de arte e a coleção traz para dentro de casa aquilo que o mundo às vezes ignora, ou procura ignorar, mas que para os colecionadores se mostra fundamental no sentido de compreender suas almas.

Evangelina Seiler

EVANGELINA SEILER é curadora e consultora de arte. Pesquisa a história da arte contemporânea e trabalhou no Centro de Arte Contemporânea de Genebra no final dos anos 80 e nos anos 90, e conviveu com artistas e curadores da geração, buscando, através dessa convivência, entender a política da arte e o que move o artista. Foi diretora da Casa França Brasil de 2009 a 2014.
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