Enquanto navego pelo site da Coleção Calmon-Stock, penso no “depósito do que aí está”, que escreveu João Cabral de Melo Neto. Instigada por seu Museu de Tudo, me encanta imaginar este espaço virtual também enquanto arquivo, em todo seu potencial instigante. O “tudo”, aqui, assume os contornos da Coleção em si, suas pulsões, elaborações e mudanças, aliadas a toda uma constelação de investigações abrangentes. Mais do que apenas dados e reproduções fotográficas das obras constituintes, o site da Coleção Calmon-Stock reúne referências, belíssimos textos críticos e filosóficos, além de um potente ensaio dos próprios colecionadores (em que o processo de formação deste agrupamento é sensivelmente revisitado). A união das obras junto a estas reflexões em um mesmo espaço digital viabiliza um arquivo onde nos é oferecida não apenas uma Coleção (em seu sentido estrito e material), mas também todo o vivo universo de pensamento que a circunda.
Não obstante, enquanto repositório deste potente conjunto de obras – anteriormente restrita aos olhos circunscritos a um ambiente doméstico e privado, este espaço virtual ambiciona tornar a Coleção disponível a outros olhares, viabilizando novos caminhos para e com as suas peças. Ciente de seu potencial enquanto material de pesquisa, nesta interface a Coleção Calmon-Stock generosamente acessibiliza seu conteúdo a todos que por este se interessarem, investindo no alargamento das possibilidades de interpretação e investigação desta íntima e potente agregação.
Na página intitulada “A Coleção”, a mesma nos é oferecida enquanto conjunto completo, por meio de uma grade que propicia o alargamento de nexos entre as peças. Sou arrebatada pela infinita gama de relações possíveis entre as obras, imagino e ensaio fios associativos a perder de vista. Sinto-me compelida a ressaltar: a aparente aleatoriedade que as imagens prontamente nos apresentam é apenas isso, mera aparência. Em verdade, aqui observamos a Coleção a partir de seu movimento de crescimento natural. Em um gesto organizacional igualmente simples e fértil, as obras são aqui ordenadas a partir de suas respectivas aquisições, sinalizando o intrínseco processo de formação do conjunto e a variação dos temas que, pouco a pouco, são incorporados neste íntimo e preciso amalgamado de obras. Observamos este conjunto enquanto um organismo vivo, e, já que vivo, em contínua mudança, subjugado a parâmetros de adição variantes, onde identificamos certa potência.
A simples observação desta página e sua visualidade conjugam, em si, a memória insistente de um André Malraux que se prostra sobre um imenso conjunto de imagens [img. 1], em seu íntimo e evidente processo de elaboração criativa. Instigada, eu também me debruço sobre a Coleção. Observo as imagens reunidas: são colagens, esculturas e fotografias. Vejo rostos, corpos, letras e alguns animais, além de pequenos objetos intrigantes, esculturas elaboradas a partir de materiais da construção civil, pinturas de sagaz ironia, bordados, vídeos, obras digitais e composições de cunho contundentemente político.
A profusão de imagens e motivos iconográficos conjugam sabidas referências historiográficas, quase referenciando manifestações seminais do arquivo como o Museu Imaginário de André Malraux. E é ótimo que tenhamos Malraux por perto (novamente) ao pensar o site da coleção Calmon-Stock, uma vez que suas proposições (anunciadas em 1947 em seu As vozes do silêncio) são manifestos prescientes da era digital, já então localizando o deslocamento do objeto de arte físico pela reprodução fotográfica. Mais do que isso, Malraux nos é importante porque privilegia o gesto curatorial, localizando explicitamente o ato individual e criativo no processo de agrupamento e exibição das obras e suas reproduções, detalhe importante para a elocubração que ambicionamos aqui.
Afastando-nos das especificidades do crítico francês (ainda que não de suas ambições), em seu Desempacotando minha biblioteca: Um discurso sobre colecionar (1931), Walter Benjamin investiga o ato de colecionar, destacando os potenciais criativos que observa no processo. No ensaio, o autor sujeita a existência do colecionador a uma “relação muito misteriosa com a propriedade”, afirmando o mesmo enquanto figura passional e indispensável (afinal, segundo o autor, “o fenômeno do colecionar perde seu sentido à medida que perde seu agente”). Assim, para Benjamin, toda coleção seria alimentada pelas pulsões íntimas de seu colecionador, cuja existência estaria sujeita “a uma relação com as coisas que (…) as estuda e as ama como o cenário, como o teatro de seu destino.”
Isto posto, possibilitar a observação da Coleção a partir de sua ordem natural de estabelecimento é uma característica generosa e inventiva deste arquivo digital. Mais do que isso, esse gesto simples traz à tona as pulsões e estética dos colecionadores, o pensamento, estética, afeto e apreço de Roberto e André. E, ao fazê-lo, logo possibilita o vislumbre da coleção não enquanto conjunto estático e encerrado em si mesmo, mas, ao contrário, enquanto matéria viva e pulsante, moldada por suas afinidades constituintes.
Este gesto curatorial íntimo e objetivo, que desloca a apresentação das obras – abandonando nexos previsíveis como afinidades temáticas, formais ou de autoria – e as organiza a partir de suas ordens de aquisição, explicita o íntimo e gradual processo de elaboração da Coleção, em especial o processo pressuposto no subitamente “perceber” que se tem uma coleção de arte em mãos, como bem narram seus organizadores. Esta organização, portanto, ressalta a importância conferida por Benjamin aos afetos do colecionador, aqui, em especial, os de André e Roberto. Mais do que isso, este gesto nos permite observar a significativa mudança manifestada progressivamente nas adições que fundam e consolidam este amalgamado de obras, em especial nas aquisições mais recentes.
A reviravolta significativa que, para mim, esclarece e consolida a imprescindível importância dos colecionadores é a intuição clara da situação histórica na qual se viram inseridos. Quando confrontados com a terrível situação política do Brasil (posterior à eleição de um fascista à presidência da república em 2018), André e Roberto tomam uma posição objetiva e pragmática frente à agência envolvida no processo de aquisição de obras. Firmes e muito conscientes do papel desempenhado pelo capital (não apenas simbólico) deslocado por meio de seus apoios e aquisições, voltam sua atenção às vozes de artistas mais diversos, contundentemente posicionados.
Estas aquisições recentes – que tomam forma nas obras de artistas como Moara Brasil Tupinambá, Barbara Milano, Kandú Puri e Ventura Profana – e os apoios concedidos aos coletivos Tupinambá Lambido e Levante Nacional Trovoa se estabelecem a partir da percepção clara da possibilidade de fortalecimento representada pelos processos de aquisição. Mais do que isso, trata-se de inclusões que explicitam a consciência da Coleção frente a seu contexto e implicações materiais, tornando-a menos isenta e homogênea, mais contundente, menos masculina e branca, mais urgente e pertinente.
Assim, as mais de 300 peças “inscritas” neste “círculo mágico” de que fala Benjamin fundam um conjunto que não surge a esmo, mas sim a partir dos ensejos e critérios estéticos (e, no sentido Kantiano, também políticos) de seus organizadores. Reverberando a constatação dos próprios colecionadores, quando confrontamos a Coleção em sua completude, o “tudo” parece “mais do que a soma” de seus elementos constituintes. Esta dilatada miscelânea nos oferece possibilidades de interpretação, investigação e reflexão quase infinitas. A Coleção, em si, sabe mais do que jamais seríamos capazes de extrair dela. E, talvez por isso, a imagem de Malraux arrebatado pela comunhão de imagens seja a imagem de todos nós quando diante da Coleção Calmon-Stock.
Imagem 1: André Malraux revisando as fotografias selecionadas para seu As Vozes do Silêncio (1947).